Formação docente: ciladas e desafios para o Brasil avançar
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Por Coryntho Baldez
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Um amplo debate sobre experiências e políticas educacionais inovadoras foi promovido, de 7 a 9 de fevereiro, pelo Colégio Brasileiro de Altos Estudos (CBAE) da UFRJ, em sua sede, no Flamengo.
O evento, que reuniu pesquisadores vinculados às cátedras de educação da UFRJ e de outras instituições, como a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), integrou as atividades do Fórum Brasileiro de Estudos Avançados (Fobreav).
Novas experiências contrariam poder estabelecido
Na abertura, a diretora do CBAE/UFRJ, Ana Célia de Castro, ressaltou que o Fórum – “constituído por 14 institutos de universidades brasileiras” – pretende debater e recolher propostas de políticas públicas que contribuam para transformar a realidade educacional no Brasil.
“Muitas reflexões estão sendo feitas e já construímos alguns consensos em torno do documento Anotações para um Projeto Progressista na Educação Brasileira. Precisamos agora ampliar essa ação e torná-la efetiva”, disse. (ver aqui matéria sobre o projeto).
(Assista aqui a gravação da transmissão do evento).
A dirigente observou, ainda, que as várias experiências em curso no campo da formação docente vão contrariar projetos de poder e interesses já estabelecidos. Para enfrentá-los, ela considera provável que novas coalizões políticas sejam constituídas, dentro e fora da universidade.
“A boa notícia é que os ventos são favoráveis para uma navegação de longo alcance, com pessoas-chave, com poder de alavancar ações importantes, ocupando posições estratégicas”, frisou.
A reflexão sobre o futuro, disse, deve ser permanente, pois “o que acabou de ser implementado pode ser rapidamente descartado”. Embora tendo como referências os objetivos do desenvolvimento sustentável, a nova era – acrescentou – contém numerosas incertezas críticas.
Segundo a pesquisadora, ainda não sabemos qual será a universidade do futuro e para que mundo ela precisará preparar os estudantes tanto do ensino básico como da educação superior.
“No entanto, sabemos que a universidade pós-pandemia mudou profundamente as formas de agir e pensar de estudantes e professores. E, nesse sentido, a pandemia acelerou mudanças institucionais que vieram para ficar. E ela não perdoará posturas ultrapassadas”, assegurou.
Para Ana Célia, a experimentação será permanente e as capacitações precisarão ser cada vez mais dinâmicas. “As ciências são e serão as bússolas confiáveis, daí a sua importância para a educação”, concluiu.
Separação histórica na educação
Integrante da mesa de abertura, o professor Naomar Almeida Filho, titular da Cátedra de Educação Básica Alfredo Bozzi, da USP, disse que é preciso enfrentar a separação entre educação básica e educação superior que se configura nas instituições de ensino.
“Ela é a fonte de muitos problemas e consideramos que o Fobreav pode ser um espaço com potencial de catalisar uma discussão que consiga superar essa apartação”, destacou.
Segundo ele, poucos países no mundo com maturação acadêmica e certo grau de desenvolvimento econômico têm situação similar à verificada no Brasil.
“Dentro das universidades existe ainda a separação entre graduação e pós-graduação. Podemos até dizer que a universidade brasileira se distingue exatamente por isso. São várias fragmentações que identificamos como parte de uma problemática mais ampla”, analisou.
O curioso, prosseguiu, é que a Constituição e a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) asseguram o chamado regime de colaboração entre os entes federados e o governo federal.
Ele observou que toda a rede de ensino superior vinculada à esfera federal e o conjunto de instituições públicas de educação no âmbito dos estados e municípios devem fazer parte do regime de colaboração.
“Temos um arcabouço legal, uma demanda social e uma dívida histórica, mas continuamos sem saber avançar em direção a soluções”, criticou.
Naomar apontou, ainda, que o “modelo de caixinhas” em torno do qual a universidade se organiza é um complicador. “Se a universidade não consegue superar internamente o seu fracionamento, é muito mais difícil fazê-lo fora dos seus próprios muros”, afirmou.
Contudo, ele considera que não será por falta de boas ideias e de projetos inovadores – como o Complexo de Formação de Professores (CFP) – que a apartação entre o ensino superior e a educação básica deixará de ser resolvida.
“A nossa expectativa é debater de modo prático como articular esse conjunto de experiências em um projeto comum. No novo contexto nacional, queremos que o Fórum seja um espaço para pensar propostas estratégicas que apontem para um futuro diferente na relação entre universidade e educação básica”, completou.
Institucionalidade pode virar armadilha
Uma das palestrantes do evento, a coordenadora do Comitê Executivo do CFP, Carmen Gabriel, apresentou um vídeo institucional com um panorama sobre as atividades do Complexo, uma rede formativa que engloba diversas instituições, além da UFRJ.
“Ele não é um projeto específico, não é um programa e nem faz parte de uma unidade acadêmica. No fundo, o que o Complexo anseia é refundar uma institucionalidade no campo da formação de professores”, sintetizou.
Professora titular da Faculdade de Educação (FE) da UFRJ e uma das coordenadoras da Cátedra Anísio Teixeira de Formação de Professores, Carmen lembrou que o Complexo foi criado na gestão do ex-reitor Roberto Leher, em 20 de dezembro de 2018.
“Sabíamos que precisávamos mudar o papel da universidade pública na formação de professores e, desde então, estamos buscando implementá-lo, passo a passo”, disse.
Em sua exposição, a pesquisadora frisou que a institucionalidade pode ser uma autêntica armadilha para novas experiências, como a do Complexo.
Para Carmen, o grande desafio para propostas inovadoras é conferir a elas certa permanência institucional. Frisa, contudo, que “não é uma estabilidade para fixar um sentido único e para sempre, mas que permita avançar em alguns aspectos do ponto de vista institucional e político”.
Ela alertou que, na universidade pública, o que é mais institucionalizado pode ter mais poder, mas tem menos “jogo de cintura”.
“A questão é como experiências inovadoras podem ganhar espaços de poder na universidade, importantes para implementar políticas de formação de professores, sem perder a vivacidade e a abertura para o novo. Essa é uma tarefa que temos enfrentado com altos e baixos”, afirmou.
Entraves para a formação dentro da universidade
Carmen destacou, ainda, que a institucionalidade do Complexo parte de “apostas muito simples”. A primeira delas é sobre a necessidade de reconhecimento do papel da universidade pública para a formação de professores.
“Existem algumas propostas aparecendo, mas, se olharmos bem, a universidade não está necessariamente dentro deste processo. Precisamos assumir com muita força, do ponto de vista político, o papel da universidade pública na formação de professores”, defendeu.
Parece fácil falar, acrescentou, mas é um processo difícil porque a própria universidade inclui a formação de professores quase como um “cavalo de troia” para os “institutos de origem, como os chamamos na UFRJ”.
“Esses institutos assumem a licenciatura, mas, sem saber muito o que é isso, acabam reconfigurando certas hierarquias e dicotomias”, acentuou.
O reconhecimento institucional, segundo ela, passa pela refundação da própria concepção sobre o que é formar professores dentro de uma universidade pública.
“Qual é o espaço político que as licenciaturas têm para isso? Elas são vistas, muitas vezes, como um lugar de vazio epistemológico, que aplica mas não produz conhecimento. Esse é o primeiro ponto a vencer internamente entre os colegas para podermos avançar”, alertou.
Para Carmen, a importância da Cátedra Anísio Teixeira de Formação de Professores é exatamente mostrar que a educação também produz conhecimento científico e, indo mais longe, pode problematizar o próprio sentido da ciência.
É preciso entender, disse, que a educação não é apenas um lugar de aplicação de conhecimentos produzidos em outros lugares. Essa desvalorização relativa se traduz, por exemplo, “na organização dos currículos e nos lugares que as disciplinas ligadas aos cursos de licenciatura assumem”.
Não é à toa, continuou, que as licenciaturas constituem a maior parte dos cursos noturnos da UFRJ. “Isso não é algo neutro. O espaço político das licenciaturas precisa ser trabalhado”, asseverou.
Outro aspecto crucial por trás da experiência do Complexo, destacou, é que a formação de professores na universidade pública não pode depender exclusivamente da Faculdade de Educação. “Esse é um imbróglio complicado. Não depende, mas também não se pode fazer sem ela”, disse.
Para a coordenadora do CFP, a formação de professores pela Faculdade de Educação tem papel importante, mas é necessário que ela “abra mão de um pseudomonopólio para envolver todas as unidades, as áreas e as disciplinas na formação de professores”.
A Faculdade de Educação só abriga o curso de Pedagogia, mas atua em todas as outras licenciaturas: “Então, ela tem um papel central no processo de refundação institucional”.
Escola básica como lugar de formação
Por fim, outro pilar que Carmen considera caro ao Complexo – “talvez o mais importante” – é a valorização da escola como espaço de formação.
O lugar em que o futuro professor vai atuar, ou seja, o seu lócus profissional, segundo ela, não é apenas um espaço onde se aplicará o conhecimento, mas também de formação de professores. “Tornar-se professor é um processo permanente”, observou.
Essas “apostas”, frisou, pressupõem pensar em como se faz isso. A formação de professores, para a pesquisadora, é multidimensional e abrange aspectos cultural, pedagógico, político e epistêmico.
“Quando criamos a Cátedra Anísio Teixeira foi no sentido de produzir e fazer avançar conhecimentos que estão sendo elaborados em vários espaços”, assinalou.
Carmen advertiu que nenhuma das áreas do conhecimento, isoladamente, vai trazer uma solução miraculosa e que nenhuma discussão pode ser feita à parte da figura do professor da educação básica. É preciso trazer o professor para pensar junto com a gente as políticas de formação, assegurou.
“Mas como fazer isso? Dentro dessa institucionalidade que pressupõe a armadilha entre liberdade e poder, embora não queira opor esses dois conceitos?” São dúvidas, disse, que não podem impedir a possibilidade de inovar.
Em termos de institucionalidade, a dificuldade, para a coordenadora do CFP, é tanto interna como externa.
Invocando a experiência à frente do Complexo, ela defende a criação de uma frente política que atue junto aos poderes públicos federal, estadual e municipais “para que eles compreendam o próprio sentido de docência”.
Segundo Carmen, não adianta “termos ideias maravilhosas” se o professor da rede não tem tempo para nada além de ficar com os alunos em sala de aula, criticou.
É necessário exigir, ressaltou, que o professor tenha um tempo para formação, como prevê a lei. “Formação continuada não é uma iniciativa pessoal, que depende do esforço individual do professor. É um direito dele”, sustentou.
Há todo um trabalho a se fazer, de acordo com a dirigente do CFP, para construir políticas públicas em que as partes que integram o que chamamos de ‘casa comum’ da formação sejam articuladas pelas suas incompletudes.
A intenção, completou, é que cada um dos sujeitos dessa rede – universidade, rede básica, poder público e movimentos sociais – traga o aporte que lhe cabe nesse processo de formação de professores.
Excelente proposta!