Reuni para ensino básico e papel da formação docente dominam debate sobre projeto para educação

Legenda: Ricardo Henriques, Maria Fernanda, Carmen Gabriel, Denise Pires e Naomar Almeida

Por Coryntho Baldez

O Colégio Brasileiro de Altos Estudos (CBAE) da UFRJ promoveu um ambicioso debate intitulado Visão Estratégica para um Projeto Progressista na Educação, em 29/11, com renomados pesquisadores do campo educacional.

Na ocasião, o conferencista Naomar Almeida Filho, professor da Universidade de São Paulo (USP), defendeu um amplo programa nacional de investimentos para a educação básica, nos moldes do Reuni – lançado em 2007 para expandir o acesso e melhorar as condições de funcionamento das universidades federais.

O novo programa, segundo ele, seria destinado a Consórcios Estaduais de Educação Superior, a serem compostos por universidades e institutos federais e estaduais, com parcerias de secretarias estaduais, municipais e conselhos de educação.

“A ideia é criar sistemas estaduais integrados de formação de professores para a educação básica, em regime de colaboração e com plena mobilidade interinstitucional”, ressaltou Naomar, titular da Cátedra de Educação Básica Alfredo Bozzi, da USP.

Coordenada pela reitora da UFRJ, Denise Pires de Carvalho, a mesa do evento foi composta pelos seguintes debatedores: Carmen Gabriel, coordenadora da Cátedra de Formação de Professores Anísio Teixeira; Maria Fernanda Elbert, titular da Cátedra Universidade do Futuro; e Ricardo Henriques, da Fundação Dom Cabral e do Instituto Unibanco. Veja o debate completo


Complexo: exemplo de fomento à formação

Além de um Reuni para a educação básica e a criação de consórcios regionais, o conferencista elencou ainda uma série de proposições para o sistema educacional.

Citou, por exemplo, a experiência exitosa do Complexo de Formação de Professores da UFRJ, entre outras, ao sugerir o “fomento à formação prática” em contextos reais de aprendizagem na interface educação básica e educação superior.

Essa proposta seria viabilizada mediante a oferta massiva de bolsas Pibid (Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência) e de Residência Pedagógica.

A iniciativa de elaborar um projeto progressista para o setor, acrescentou, deriva de uma conjuntura que exige pensar em uma educação pública com qualidade e equidade no contexto de uma sociedade como a brasileira, que se estrutura com base em desigualdades.

“Há uma necessidade de pensar estrategicamente esse futuro, ou seja, como transformá-lo”, sublinhou o pesquisador.

Segundo Naomar, o estado brasileiro, no momento, experimenta uma inserção subordinada no contexto da globalização neoliberal e negligencia o seu papel de produzir serviços públicos adequados e de qualidade.

“O Estado, hoje, geral mal-estar social e promove iniquidades sociais, inclusive no campo da educação”, assevera.

O professor da USP parte da premissa de que os efeitos transformadores na fronteira tecnocientífica, aliados às ameaças à cultura democrática e à crise climática, exigem uma profunda mudança na educação.

Uma mudança, segundo ele, capaz de enfrentar, ao mesmo tempo, dívidas históricas do passado colonizado e desafios decisivos de um futuro globalizado.


“Cultura digital amplia conceito de tecnologia”

Em sua fala, Carmen Gabriel destacou, inicialmente, uma frase de Boaventura de Souza Santos – “Precisamos encontrar caminhos para afirmar a diferença e combater a desigualdade”. A sentença do sociólogo português, segundo ela, resume muitas das questões levantadas na palestra de abertura.

A pesquisadora fez também uma reflexão provocadora em torno da ideia de tecnociência e dos seus efeitos sobre as relações sociais, apresentada pelo conferencista.

“Gostaria de dar mais ênfase à ideia de cultura digital do que de tecnologia, embora sejam conceitos que caminhem juntos”, propôs Carmen, que coordena o comitê permanente do Complexo de Formação de Professores da UFRJ.

Ela atribuiu à noção de cultura com a qual trabalha o sentido de lente pela qual olhamos o mundo. E sentenciou: “Não há escolha, vivemos em um mundo imerso numa cultura digital. Essa expressão amplia o olhar sobre a tecnologia e me parece mais potente”.


“Professor tem papel reativo no debate sobre educação”

A professora indagou, em seguida, como o campo educacional, afetado por essa ampla gama de questões, pode reagir. Ao refletir sobre possíveis respostas, deu ênfase à questão da formação docente.

Enfatizou que, historicamente, as pesquisas apontam que o professor da educação básica, especialmente, desempenha um papel meramente reativo a estratégias pedagógicas decididas, na maior parte das vezes, sem a intervenção ou a participação dele.

“A partir da minha experiência de construção do Complexo de Formação de Professores, considero que um dos maiores desafios nossos é incluir o professor no debate sobre novas estratégias educacionais e políticas públicas de formação docente”, assegurou.

Em sua avaliação, não se trata de dar voz ao professor, mas criar condições para que ele possa participar das decisões sobre os rumos da sua profissão.

Carmen salientou, ainda, o predomínio de uma concepção de educação pautada numa lógica de aprendizagem, ou seja, na relação entre os alunos e o conhecimento.

Para ela, no tripé pedagógico formado por professores, alunos e saberes, o papel secundário sempre cabe ao professor. Em outro tripé, formado por Estado, gestores e professores, a situação se repete. Ou seja, as relações são predominantemente bilaterais, com a exclusão do profissional docente.

“Com isso, enfraquecemos o polo do ensino, ou seja, a relação do professor com o conhecimento. E não existe aprendizagem sem ensino, eu não acredito nisso”, disse.

A experiência do Complexo, frisou, aponta um importante caminho. “Se a gente não reconhecer que o professor de educação básica é um profissional, com especificidades e coformador dos futuros professores, não conseguiremos sair do lugar”, analisou.

Ao comentar a sugestão de criação de consórcios regionais de educação – proposta que elogiou – Carmen destacou o arranjo institucional inovador no campo da formação docente representado pelo CFP.

A concepção do Complexo, explicou, parte justamente da construção de um novo ambiente formativo, no qual docentes da rede básica, professores universitários e movimentos sociais estejam juntos.

Ela defendeu a necessidade de criar espaços institucionais que permitam novas experiências e estimulem a troca e a produção de saberes horizontais. “É preciso romper a lógica de que a universidade ilumina a escola”, criticou.

“A experiência desse novo espaço de formação docente, que chamamos de ‘casa comum’, inclui vários sujeitos e saberes e busca estimular o diálogo entre a universidade e a escola”, completou.


“Evasão precisa ser enfrentada”

Já Maria Fernanda Elbert, professora do Instituto de Matemática (IM) da UFRJ, trouxe para o debate o que chamou de “componente de urgência” sobre a necessidade de “passar da teoria à prática”.

Nesse sentido, considerou as proposições apresentadas pelo conferencista como muito importantes por sugerir caminhos concretos para transformar o sistema educativo brasileiro.

Ela apontou problemas específicos do ensino universitário que considera importante enfrentar com celeridade. Um deles é o alto índice de evasão de alunos.

“Dados recentes do censo do ensino superior mostram um percentual de 59% de desistência”, disse. É difícil saber, segundo ela, se essa evasão está mais relacionada aos cursos, às instituições ou ao próprio sistema de ensino superior.

Às vezes, a desistência é muito precoce e pode estar vinculada, também, à forma de escolha pelo Sisu (Sistema de Seleção Unificada), segundo a titular da Cátedra Universidade do Futuro.

Uma das possíveis saídas para esse quadro, afirmou, é instituir ou fortalecer nas universidades brasileiras as políticas de permanência, acolhimento e integração.


Consórcios podem aproveitar experiência do Complexo

Outro problema, disse, é o longo tempo de permanência nos cursos superiores de boa parte dos estudantes. “Há dados que indicam que 55% deles passam mais de nove anos na universidade. É um cenário que pode apontar, segundo ela, para uma gestão deficiente da universidade, mas também uma dificuldade nossa de impor limites”.

Como professora de Cálculo I, ela afirmou que há alunos que frequentam a disciplina de seis a oito vezes. “Nós, professores, estamos falhando em algum lugar e precisamos nos debruçar sobre essas questões”, alertou.

Sobre os consórcios propostos pelo professor Naomar Almeida Filho, ela considera necessário um pacto entre reitores, professores, estudantes, governadores e prefeitos para “estabelecer uma governança que façam avançar as nossas propostas”.

O Complexo de Formação de Professores da UFRJ, segundo ela, é um exemplo de uma importante parceria com a rede pública básica, especialmente no município do Rio de Janeiro.

“Nós visitamos a Secretaria Estadual para tentar também uma parceria. São experiências que talvez sirvam como ensaio para a proposta dos consórcios”, complementou.


“Só com educação para todos teremos equidade”

Ao comentar a exposição de abertura, o debatedor Ricardo Henriques – da Fundação Dom Cabral e do Instituto Unibanco – disse que ideia de educação pública com qualidade e equidade abre a possibilidade de pensar a educação como um todo.

“Acho que devemos redefinir esse conceito. Só existe qualidade em uma sociedade com os traços socioeconômicos destacados pelo palestrante se ela for para todos”, salientou.

Em seguida, criticou a transição para a escola pública realizada nos anos 1970 e a naturalização de um processo de desigualdade gerado no interior do próprio sistema educacional.

Embora lembre que mais de 85% dos professores da rede básica sejam oriundos de instituições privadas, destacou que a universidade pública tem responsabilidades a assumir em relação a políticas públicas educacionais para superar esse quadro.

“Uma estratégia que esteja efetivamente focada em um ensino-aprendizagem a serviço dos estudantes tem que trazer como elemento central a importância e a responsabilidade do professor”, frisou Henriques, que foi Secretário Nacional de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secada) do MEC. Como agravante desse cenário de desigualdades educacionais, citou a emergência do “ressentimento” no seio da sociedade. “Esse é um elemento-chave para compreendermos esses tempos”, observou.

Tal sentimento, segundo ele, organizou um campo de valores associado ao papel das elites intelectuais e ao desengajamento das redes universitárias e de ensino básico do compromisso com a equidade.

“Acho as proposições que o Naomar trouxe deveria colocar luz sobre as configurações novas da desigualdade e essa conjuntura que alimenta uma visão de sociedade em que opiniões valem mais do que fatos e a ciência é secundária”, afirmou.

Citou como exemplo a mudança do perfil de professoras e professores, com a presença crescente, nos últimos 20 anos, da comunidade evangélica.

“Obviamente, não tenho nenhuma restrição às profissões de fé, porém esse é um campo que está cada vez mais flertando com elementos do negacionismo”, criticou.

É uma conjuntura, diz ele, que nos propõe reflexões sobre uma esfera de valores “que a universidade não está querendo enfrentar, e que, em última instância, alimenta o campo dos ressentimentos”.

Para Henriques, se a universidade não encarar algumas dessas dimensões da formação básica, o Brasil vai experimentar o aguçamento de uma inserção subordinada no contexto internacional, com parcela significativa da sociedade numa condição de limbo social.


Reitora elogia ideia de Reuni para ensino básico

Ao fim das exposições, a reitora da UFRJ, Denise Pires, disse ter sido um enorme prazer coordenar a mesa – “sou apaixonada pela educação” – e que as universidades precisam, de fato, se preocupar com as questões levantadas no debate.

Ela elogiou a ideia de um Reuni para a educação básica e lembrou da experiência do campus de Duque de Caxias da UFRJ – que lançou cursos inovadores e foi criado durante o processo de expansão de universidades e novos campi universitários possibilitado pelo programa federal.

Denise contou que, em palestra recente, o professor Antônio Nóvoa, da Universidade de Lisboa, informou que o presidente da França, Emmanuel Macron, pretende criar um fundo para financiar a educação básica.

A reitora disse que, na França, é mais fácil criar um programa de investimentos porque lá existe uma carreira de Estado, os professores trabalham em horário integral e com os salários em dia. “São muitas as diferenças para a nossa realidade”, assinalou.

No entanto, defendeu que iniciativa similar seja adotada no Brasil. “Haverá uma dificuldade muito maior, dada a imensa desigualdade do sistema educacional, mas que precisa ser enfrentada e superada”, sustentou.

Afirmou ainda que, em recente visita a Duque de Caxias, ouviu a sugestão de criação de um curso de licenciatura naquele campus. Considerou a ideia interessante, mas alertou para a necessidade de não repetir fórmulas: “Não se pode fazer mais do mesmo”.

A reitora sugeriu, então, que os autores da iniciativa procurassem a professora Carmen Gabriel, coordenadora do CFP, para conversar sobre o projeto da nova licenciatura. “Ela deve ser tão inovadora quanto o campus de Caxias”, ressaltou.

Denise disse que é importante que as licenciaturas interajam com a região e sustentou que as universidades públicas, em geral, devem promover maior interação com os respectivos territórios.

“Existem questões específicas importantes em determinados territórios que precisam ser levadas em conta, ao invés de se reproduzir antigos modelos”, completou a reitora.


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